Edição realizada no Cerrado mostrou que o Goshin-dô é mais do que um simples encontro. É uma celebração da harmonia entre corpo, mente e espírito, em sintonia com a energia vibrante da natureza.
PAULO PINTO / GLOBAL SPORTS
25 DE ABRIL DE 2024 / CURITIBA (PR)
A 22ª edição do Goshin-dô realizada de 12 a 14 de abril na cidade de Alto Paraíso de Goiás reuniu cerca de 50 faixas-pretas. Após 21 anos de existência, o tradicional encontro do karatê ITKF mudou a sede de Setiba, no Espírito Santo, para o Estado de Goiás.
Organizada pelo Instituto Goshin-dô, esta edição do tradicional encontro teve a chancela da International Karate Federation (ITKF) e da Confederação Brasileira de Karatê-dô Tradicional (CBKT), entidades que no encontro foram representadas pelos presidentes Gilberto Gaertner e Sérgio Bastos. Após o passamento do shihan Watanabe, o Instituto Goshin-dô passou a ser presidido pelo sensei Ulisses Damasceno, o anfitrião do evento.
O Goshin-dô – um shotyugueiko com outras abordagens e enfoques – teve seu formato idealizado em 2002 pelos shihans Tasukê Watanabe e Gilberto Gaertner, com a colaboração de outros renomados professores. Segundo seus criadores, trata-se de uma forma de treinamento inspirada no trabalho do sensei Hiroshi Shirai, à qual se acrescentaram outros pilares, como a meditação, a integração dos participantes com a natureza e o seminário científico. Shihan Shirai é um importante mestre japonês do karatê tradicional Shotokan, radicado na Itália, onde estabeleceu uma das escolas do karatê tradicional mais importantes da Europa Ocidental.
Acima de tudo, o Goshin-dô é um encontro vivenciado na natureza e o treinamento ocorre em ambientes inusitados, diferentes de um dojô convencional. Devido à característica do evento, não se utiliza o karatê-gi e a troca de conhecimentos e experiências entre os participantes é um dos pontos relevantes.
Após a morte do sensei Watanabe em 2020, realizaram-se três eventos na praia de Setiba, mas, por questões operacionais, o Goshin-dô foi transferido para Alto Paraíso de Goiás. O dojô original do sensei Watanabe foi desmontado com toda sua estrutura, transportada e remontada em Goiás com todo cuidado e esmero pelo sensei Ulisses Damasceno e seus colaboradores. No dojô de Alto Paraíso está também o museu do sensei Watanabe, com vários documentos e troféus, inclusive a icônica taça do IIº Campeonato Mundial de Karatê 1972, realizado em Paris, França, quando o karatê ainda era regido por uma única entidade mundial, a World Union of Karate-Do Federation (WUKO). No dojô de Alto Paraíso repousam as cinzas dos senseis Tasukê Watanabe e Yasutaka Tanaka.
Realizado em três dias, o Goshin-dô 2024 começou no dia 12 de abril com a palestra do shihan Eckner de Pereira Cardoso Sobrinho. No dia 13 as aulas foram conduzidas pelos shihans Gilberto Gaertner e Ugo Arrigoni Neto, e os senseis Antônio Carlos Walger e Ivan Menezes. A agenda foi concluída à noite com o encontro científico conduzido pelo sensei Iko Trindade e sensei Guaracy Tanaka.
No dia 14, as aulas foram ministradas pelos shihans Gilberto Gaertner e Sérgio Bastos. O encerramento foi precedido de uma vivência de ritmo e música com o maestro Paulo Emílio e coroado com depoimentos emotivos sobre o passado e o futuro do Goshin-dô. A 23ª edição, programada para 2025, promete ser ainda mais inspiradora e acolhedora.
Avaliações do Goshin-dô 2024
O professor doutor Gaertner avaliou positivamente o evento e enalteceu o trabalho realizado pelo sensei Ulisses e pelo comitê organizador local, responsáveis pela transferência da sede do dojô e pela realização do Goshin-dô, com a colaboração inestimável do Felipe e demais membros da equipe, além do pessoal da comunicação e do professor Átila, responsável pela logística, hospedagem e alimentação no Restaurante Bom F’ass.
“Em meio às paisagens deslumbrantes de Alto Paraíso de Goiás, os participantes experimentaram uma conexão profunda com o meio ambiente, enquanto aprimoravam suas técnicas e compartilhavam experiências.”
“Agradeço aos professores que abrilhantaram o evento com seu conhecimento e a todos os faixas-pretas que vieram de várias regiões do País e participaram brilhantemente do Goshin-dô 2024. Alto Paraíso de Goiás possui uma natureza exuberante, com vegetação e fauna típicas do Cerrado e incontáveis cachoeiras que embelezam o local. Por último faço agradecimento especial também aos proprietários da Estância Jacy por terem cedido um espaço extremamente acolhedor, muito bem cuidado e com lindas cachoeiras.”
O shihan hachi-dan (8º dan) destacou que o 22º Goshin-dô não foi apenas um encontro de karatecas, mas uma imersão na essência do karatê e na energia revitalizante da natureza. Em meio às paisagens deslumbrantes de Alto Paraíso de Goiás, os participantes experimentaram uma conexão profunda com o meio ambiente, enquanto aprimoravam suas técnicas e compartilhavam experiências.
“Longe dos limites tradicionais dos dojôs, o Shotyugueiko ganhou nova dimensão, com a meditação, a integração com a natureza e o intercâmbio de conhecimentos tornando-se pilares fundamentais do evento. Inspirado no legado do sensei Hiroshi Shirai e enriquecido por décadas de evolução, o Goshin-dô é mais do que um simples encontro: é uma celebração da harmonia entre corpo, mente e espírito, em sintonia com a energia vibrante da natureza. É uma experiência que transcende os limites do karatê-dô tradicional, alimentando a alma dos participantes e renovando o compromisso com a arte marcial e com o mundo ao nosso redor”, concluiu Gaertner.
Legado Watanabe
Sensei Ulisses Damasceno avaliou que o Goshin-dô 2024 cumpriu sua missão ao oferecer conhecimento técnico e didático, além de um ambiente novo e prazeroso. “Com cerca de 50 participantes entre professores e praticantes, o evento não deixou a desejar, e apontou nova direção para o legado do sensei Watanabe”, disse o anfitrião.
Faixa preta yon-dan (4º dan), Ulisses Damasceno foi aluno de mestre Watanabe desde 1976. Em 1984 deixou Porto Alegre (RS) e foi morar com Tasukê em Goiânia. “O acompanhei até seu falecimento e fiquei responsável pela logística do Goshin-dô em todas as edições realizadas no balneário de Setiba. Considerado um filho por ele, exerci a vice-presidência do Instituto Goshin-dô e nos eventos eu ficava responsável pela logística, enquanto ele cuidava da área técnica.”
Sensei Ulisses reafirmou que o Goshin-dô sempre teve a CBKT e a ITKF como parceiros, sendo que sensei Gilberto Gaertner participou diretamente da criação do instituto. “Com o falecimento do mestre passei a organizar o evento e só pude fazê-lo graças à parceria das duas entidades, que ajudaram a organizar e a viabilizar a parte técnica.”
Sobre a mudança para Goiás, o professor yon-dan explicou que a decisão teve origem na memória afetiva de sua história com o mestre. “Entendi que seria melhor transferir o instituto para Alto Paraíso, na Chapada dos Veadeiros, onde teve início uma bela aventura entre o mestre e eu, quando morávamos em Goiânia. Logo me fixei no local, enquanto o mestre se mudou para Brasília. Aqui funciona a academia Watanabe, fundada em 1991 por mim e meu irmão, onde guardamos toda a memória do mestre numa espécie de museu. Encerramos um ciclo em Setiba e demos continuidade ao projeto, agora na Chapada dos Veadeiros.”
Para sensei Ulisses essa continuidade foi o compromisso que assumiu com seu mestre ainda vivo, de manter sua memória e seus ensinamentos. “Desmontamos o dojô de Setiba com auxílio dos karatecas Cristina e Cshuster, que moram lá, e montei outro exatamente igual, num terreno ao lado da nossa academia e que pertence ao meu irmão Átila, também faixa preta, aluno do sensei desde os 13 anos.
Memória viva
Sensei Guaracy Tanaka lembrou que a mudança sempre traz consigo uma dose de desconforto, especialmente quando se está acostumado ao que parecia ser perfeito. “O Goshin-dô, com seus renomados mestres japoneses, sempre se destacou como um evento de artes marciais verdadeiramente excepcional. Era mais do que um simples treinamento; era um espaço de acolhimento e autoaprimoramento, onde se podia abrir a mente para o novo e abraçar as inovações científicas que moldavam o caminho das artes marciais.”
“Com a partida de Tasukê, uma grande lacuna se abriu, deixando-nos a todos sentir sua ausência física. No entanto, algo surpreendente aconteceu. Seu legado não apenas sobreviveu, mas floresceu, mantendo a essência do Goshin-dô intacta, a ponto de podermos sentir sua presença, como se ele estivesse conosco.”
“Em 2024,” pontuou Guaracy, “testemunhamos uma mudança significativa: o evento deixou as areias de Setiba e adentrou as terras de Alto Paraíso de Goiás, onde Tasukê havia deixado sua marca ao longo da vida. Apesar da mudança de cenário, a essência do Goshin-dô permaneceu inalterada. Sair da praia e adentrar a mata e as cachoeiras trouxe nova dimensão ao treinamento, conectando-nos mais profundamente com a natureza e proporcionando um ambiente propício à evolução pessoal.”
Embora a ausência de Tasukê seja profundamente sentida, na avaliação de Guaracy Tanaka, o evento continua vibrante e vivo, exatamente como ele desejou antes de partir. “Agora cabe a nós manter essa chama acesa, garantindo que seu legado jamais seja esquecido e que sua dedicação a nós seja honrada por meio de nossa própria dedicação ao evento.”
“O verdadeiro significado de Oss Itetsu, expressão que descreve a personalidade de Tasukê segundo o mestre Masatoshi Nakayama, torna-se evidente: é o compromisso inabalável de perseverar, adaptar-se e prosperar, independentemente das circunstâncias”, concluiu o doutor em saúde mental, fisioterapeuta e acupunturista, faixa preta san-dan, que segue os caminhos trilhado por seu pai, shihan Yasutaka Tanaka, juu-dan (10º dan) da ITKF.
Nova geração
Em sua primeira participação no Goshin-dô, a lutadora cearense de Karate Combat na primeira liga profissional de karatê full-contact Jéssika Sthefanie Maciel de Oliveira considerou a experiência incrível.
“Ter participado de um evento no qual não tinha de ficar focada numa competição, mas somente aproveitar cada troca de técnicas e de vivências que vou levar para a minha vida foi realmente muito interessante. Essa experiência me modificou internamente, pois voltei a incluir o espírito de karatê na minha rotina. Hoje ao treinar vem imediatamente à minha mente zanshin Sthefanie, presença e consciência. Ou seja, voltei mais motivada para a minha rotina, principalmente em levar essa arte que tanto amo para os esportes de contato. Eu sempre disse que o karatê era minha raiz, mas após a experiência na Chapada dos Veadeiros acrescento que o karatê é uma raiz que me une àquilo que há de divino dentro de mim.”
Jéssika Oliveira, faixa preta sho-dan, é atleta da Academia Askace de Fortaleza e vai defender o cinturão do Karate Combat em junho. Sua preparação mental para o evento está sendo realizada pelo doutor Gilberto Gaertner, que também atua como psicólogo do esporte.
Migração oportuna
Para o conceituado professor baiano Eckner de Pereira Cardoso Sobrinho, o Goshin-dô 2024 saiu da praia de Setiba e migrou para as cachoeiras de Alto Paraíso de Goiás, porém manteve a sua essência, fundamentada no pensar, estudar e praticar o karatê-dô tradicional. “Além de fomentar o clima de confraternização e amizade entre karatecas de várias gerações, o evento permite que os mais experientes transmitam o conhecimento para os mais novos que, por sua vez, dão aos mais velhos a certeza de que a tradição continua”, expôs o Profissional de Educação Física, pós-graduado em treinamento desportivo e fisiologia do exercício, diretor da Academia Piatã Fitness e hachi-dan (8º dan), membro dos shihankai da ITKF.
Samurais históricos
O professor Iko Trindade avalia que o Goshin-dô significa autoaprimoramento, o seu momento e o seu caminho. Para ele, a abordagem tradicionalista do karatê-dô enfatiza fortemente o desenvolvimento pessoal, de maneira similar ao Ethos dos samurais históricos.
“Eram renomados guerreiros não só por suas habilidades em combate, mas também por sua dedicação ao cultivo do autocontrole, alcançado mediante práticas como a meditação e a respiração consciente. Além disso, eles valorizavam a caligrafia, utilizando kanjis para criar obras de arte, poesia e textos que refletiam ensinamentos profundos, integrando assim diversas expressões culturais em sua jornada de aprimoramento.”
Durante o Goshin-dô, segundo Trindade, observa-se um forte componente de conexão com a natureza, que é vivenciado por meio do treinamento ao ar livre, compartilhado entre amigos e momentos de meditação em ambientes naturais. Além disso, há um espaço para discussões que envolvem aspectos científicos, buscando uma compreensão mais ampla do ser humano e de sua interação com o mundo.
A 22ª edição do encontro Goshin-dô ocorreu na Chapada dos Veadeiros, consolidando esse evento como um marco importante para o karatê-dô tradicional no Brasil. Sua idealização ocorreu há quase três décadas por mestres conhecidos, como Tasukê Watanabe, Hiroshi Shirai e Gilberto Gaertner, com o objetivo de promover a integração de diferentes aspectos do ser humano por meio da prática do karatê-dô.
“Acredito que o Goshin-dô oferece uma oportunidade ímpar para o autoconhecimento e o desenvolvimento pessoal, além das competições e da prática nos dojôs, fazendo dele um dos eventos mais significativos para a comunidade do karatê-dô tradicional do Brasil”, concluiu Trindade que é faixa preta roku-dan (6° dan), profissional de educação física, especialista em treinamento esportivo, mestre em Saúde Pública e doutor em Saúde Coletiva. Trindade é também vice-presidente e diretor Científico da CBKT e diretor executivo do Iko-Dô escola de karatê tradicional.